domingo, 13 de maio de 2012

Gheranda Samhita III

Gheranda Samhita

Por: Alicia Souto

A Coletânea de Gheranda foi escrita por um autor desconhecido por volta do final do século XVII e apresenta exercícios para levar o praticante ao estado meditativo.

Tradução: Marcos Rojo

Ilustrações: Gustavo Peres

Meu interesse pelos textos do Hatha Yoga surgiu quando comecei a estudá-los sistematicamente sob a orientação do dr. Manohar Laxman Gharote, na Índia. Fiz a tradução e os comentários depois de vários anos de ensinamento na cátedra de Teoria e Prática de Técnicas do Yoga III na Escuela de Estudios Orientales de la Universidad Del Salvador da Argentina e nas Faculdades Metropolitanas Unidas de São Paulo (FMU), Brasil. Espero que seja de utilidade para meus alunos e para toda pessoa estudiosa dessa disciplina. Este pequeno resumo do Gheranda Samhita é só para aguçar a curiosidade do leitor.

Entrando na caverna habitada pelo mestre Gheranda, o discípulo Candakapali o saúda e logo diz: “Oh, senhor, tu que és o maior dos yoguis, me ensine mais sobre o Yoga que nos leva ao conhecimento da Realidade”. Gheranda lhe responde: “Muito bem, alma corajosa. Já que me perguntaste, escuta atentamente o que vou te dizer. Não há prisão maior do que maya (ilusão); não há inimigo pior do que o egoísmo e não há poder maior do que a disciplina do Yoga. Assim como devemos primeiro aprender o alfabeto para podermos ler os textos sagrados, também devemos dominar gradativamente as técnicas do Yoga para obter o conhecimento da Realidade. O nosso corpo é como uma vasilha de barro crua, que ao ser colocada na água se desintegra. Por isso, devemos nos submeter ao fogo do Yoga para nos fortalecer e nos purificar”.

O Yoga apresentado no Gheranda Samhita é um sistema completo. Não é simplesmente físico. Aquele cuja mente vai se clareando progressivamente começa a ver a unidade e a inter-relação das práticas. Em comparação ao Hatha Pradipikâ, o Gheranda Samhita é um texto mais sistemático, com uma apresentação muito clara. Fornece mais de cem práticas e é muito útil para estudantes e praticantes. São encontradas certas influências vedânticas em alguns versos. Enfatizam-se os aspectos psicológico e espiritual das práticas.

O caminho do conhecimento, segundo o Gheranda Samhita
A unidade psicofísica (corpo sutil que transmigra) é responsável pelas ações que determinam o futuro renascimento, mas essa cadeia pode ser interrompida ou modificada pela prática do Yoga. Isso indica a liberdade do homem de poder modificar-se por suas ações.

As sete disciplinas ou ações para o treinamento através do corpo, segundo o mestre Gheranda, são:
1. purificação (sodhana),
2. fortalecimento (drdhatâ),
3. firmeza (sthairyam),
4. calma (dhairyam),
5. leveza (lâghavam),
6. realização ou percepção direta (pratyaksam) e
7. isolamento (nirliptam).

As relação dessas ações com seu efeito são:
1. os kriyas (satkarmas) purificam o corpo,
2. os asanas o fortificam,
3. os mudras lhe dão firmeza,
4. pratyâhâra produz calma,
5. os pranayamas levam à leveza,
6. dhyana leva à realização do ser e
7. samadhi leva ao isolamento, que é a verdadeira libertação (mukti).
Sendo o objetivo do Yoga chegar ao estado de libertação pela purificação da mente, o Yoga parte do corpo sem descuidar do comportamento, da saúde e das emoções do praticante.

No primeiro capítulo, o Gheranda Samhita descreve 21 kriyas (processos de purificação) bastante elaborados.
O objetivo é sempre espiritual, por exemplo:
- Karma dhauti (a limpeza do conduto auditivo) outorga a possibilidade de escutar sons místicos despertados internamente.
- Bhâlarandhra (a limpeza do palato com o dedo polegar) possibilita a clarividência.

Podem-se limpar os distintos órgãos internos e partes do corpo com ar, fricção ou por meio de movimentos manipulatórios. Esses processos, segundo a região purificada, podem ser classificados em:
· nasofaríngeo-audiocranianos;
· região gastroesofágica e
· região ano-retointestinal.
Exercitando e aplicando estímulo de pressão aos músculos e nervos ao redor de uma área, conseguem-se os necessários tônus e vigor. Assim podem-se curar distúrbios e enfermidades, aumentando o fogo gástrico, retardando o envelhecimento e conferindo ao praticante mais saúde e beleza. A aplicação clínica dos kriyas é muito confortadora. No entanto, seus valores terapêuticos ainda não foram suficientemente investigados.

No segundo capítulo, Gheranda diz a seu discípulo: “Existem 84 milhões de asanas descritos por Shiva ou tantos asanas como espécies de animais sobre a terra. Destes, apenas 84 são considerados importantes e, dentre eles, 32 se destacam como muito bons neste mundo de seres mortais”. Em seguida, o texto descreve os 32 asanas, começando por siddhasana (uma postura de meditação), afirmando que por sua prática se abrem as portas da liberação.

O terceiro capítulo se destina aos mudras. São descritos 25 mudras.
O termo mudra provém da literatura tântrica e tem diferentes significados:
a) postura do corpo,
b) posição particular de mãos e dedos,
c) grãos tostados,
d) mulher associada com as práticas tântricas.
e) também significa “selo”.

O termo mudra é formado por “mud” e “ra”. “Mud” é desfrutar ou ser feliz e “ra” é dar, segundo o Sarada Tilada, texto tântrico. Os comentaristas desse texto interpretam que mudra dá uma sensação de bem-estar. Houve grande influência dos mudras em rituais, teatro e dança indianos. Mas aqui nos referimos ao seu sentido no Hatha Yoga.
Os mudras utilizados na prática do pranayama são os denominados genericamente bandhas e canalizam o prana numa direção determinada.

Do ponto de vista fisiológico, os mudras tratam de controlar conscientemente certos músculos semivoluntários, como os esfíncteres anais, o diafragma, músculos da garganta, olhos etc. Nesses músculos há integração do sistema nervoso central e do sistema nervoso autônomo, que funcionam como uma unidade.
Outro aspecto importante é a manipulação de pressões internas, tanto positivas como negativas, que tonificam os órgãos, ajudando a descongestioná-los. A prática de mudras durante um longo tempo equilibra e dá maior controle sobre as atividades autônomas. Os mudras ocupam um lugar de destaque neste texto dentro de um forte contexto espiritual, indicando que somente poderão ser aprendidos sob a orientação de um guru. Combinam todos os elementos das práticas yóguicas desde asana, passando pelo controle respiratório, a concentração e a meditação, até chegar ao samadhi.

Este capítulo apresenta, além dos mudras, os três bandhas essenciais.
Os mudras são o aspecto interno dos asanas e estão relacionados de certa forma com o pranayama. O controle interno leva à libertação do complexo corpo-mente. Os mudras outorgam oito siddhis (poderes):
· animan (poder de fazer-se menor),
· mahiman (de fazer-se gigante),
· gariman (de obter peso),
· laghiman (de fazer-se leve),
· prâpti (de chegar aos objetos mais longínquos),
· prakamya (de obter tudo o que é desejado),
· îśita (de transformar o que se deseja) e
· vaśitva (de controlar tudo).
Esses siddhis indicam certo nível de controle somente em relação ao mundano e podem ser impedimentos no caminho espiritual. Se essas técnicas forem realizadas adequadamente, serão o ponto de encontro de todas as práticas yóguicas. Em outras traduções do Gheranda Samhita, como Science of Yoga, de Parvrajka, o simples conhecimento dos mudras já outorga todos os siddhis: “Mantenha-os sempre em segredo e nunca dê este conhecimento a ninguém”.

O quarto capítulo é destinado ao pratyâhâra
Estar no asana com a respiração rítmica e harmoniosa não significa que todo o movimento mental tenha cessado. Pelo contrário, afirma-se nos textos que as distrações aumentam em qualidade, tornando-se mais insistentes, e em quantidade, expandindo o interesse a um maior número de objetos.
Os sentidos adquirem maior eficácia quando a mente se liberta dos desejos relacionados às demandas corporais. Por isso, pratyâhâra está relacionado com os órgãos dos sentidos. É comparada à tartaruga, que pode voluntariamente levar seus membros para dentro do casco. É a mente que deve empenhar-se para alcançar pratyâhâra.
Se o yogui consegue controlar os órgãos dos sentidos, a possibilidade de distração externa desaparece.
O sábio Gheranda diz: “Agora exporei o excelente pratyâhâra, cujo conhecimento destrói inimigos, como o desejo”.
Esta é a lição mais curta do texto e talvez a mais difícil de aprender: o domínio dos sentidos.

No quinto capítulo, Gheranda diz: “Agora vou expor as regras do pranayama. Por sua prática, o homem pode se parecer com um deus”. Em seguida, diz que a prática deverá ser feita em um país próspero, onde se obtenham facilmente esmolas, com um governante justo, onde não haja moléstias. Deve-se construir uma cabana num lugar seguro e isolado.
Afirma que os pré-requisitos para a prática do pranayama são: 1) lugar adequado, 2) momento adequado, 3) alimentação adequada e 4) purificação dos nâdis.
Descreve oito pranayamas que chama de kumbhakas.

O sexto e o sétimo capítulos se referem respectivamente à dhyana e samadhi. Neste caminho, exploram-se todas as fases da consciência. Consegue-se a qualidade do desapego e em seguida a liberação. Samadhi é tanto um processo como seu resultado. Como processo, é uma intensa concentração mental livre de todo samkalpa (propósito) e livre de apego ao mundo. Como resultado, é a união de jîva (ser individual) com paramâtman (ser universal).
O yogui, em samadhi, entra completamente em si mesmo, “vai estabelecer sua residência no lótus de seu próprio coração”, como dizem os Upanisads.
O místico é um homem que vive neste mundo e viaja através dos três mundos, enquanto o yogui não se desloca e sim se imobiliza por extinção de tudo o que produz movimento: instinto, atividade corporal e mental.
Em samadhi, o yogui está totalmente recolhido em si próprio, até não ser mais que um germe diminuto no mais íntimo de si mesmo. O samadhi no Hatha Yoga acontece quando Kundalini, havendo reconhecido sua verdadeira natureza divina, une-se a Shiva.
Há a extinção da personalidade; o yogui transcende os três mundos e mora em brahmaloka. Pode ou não morrer nesse instante, transformando-se em um jîvanmukta (liberado em vida).
Assim são apresentadas por Gheranda as setes ações espirituais no caminho da libertação.

Em seu aspecto mais antigo, o Yoga foi concebido como uma técnica para aumentar os poderes vitais. Esse aspecto foi desenvolvido e aperfeiçoado posteriormente pelo Hatha Yoga com a introdução de práticas para controlar os efeitos e impactos da natureza.
O significado da palavra Hatha modifica-se com o tempo. No Mahabharata, é utilizada no sentido de ausência de esforço. No Amarakośa e no Yoga Vaśistha, significa força. Na literatura dos natha yogins, “ha” refere-se a Surya (sol) e “tha” a Candra (lua) e sua união denomina-se Hatha Yoga. Surya e Candra são também sinônimos dos nâdîs pingalâ e îda, respectivamente. São ainda representações simbólicas de prana e apana e sua união no pranayama é um ponto característico do Hatha Yoga. No texto Yoga Bija, 89-90: “A união de prana e apana, ou a do princípio feminino com o princípio masculino, ou a do sol com a lua, de jivâtman e paramâtman, em síntese, a fusão de todos os pares de opostos, denomina-se Yoga”. Este conceito de Yoga se adequa aos ensinamentos dos textos do Hatha Yoga que apresentam o Çakti Yoga ou Prana Samyama Yoga.

Alicia Souto: professora de Yoga formada pela escola de Kaivalyadhama (Índia) e ex-presidenta da Associação Sul-americana de Eutonia. Professora do Departamento de Estudos Orientais da Universidade de Salvador (Argentina). Fundadora do Centro de Eutonia e YogaTerapia em Buenos Aires. Professora de textos clássicos do HathaYoga na FMU (São Paulo).





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